OS MOTES DE GRALHAS

UMA TRADIÇÃO MILENAR

Em finais do mês de Dezembro ou princípios de Janeiro, já em pleno e rigoroso Inverno, que por estas paragens, é ainda hoje conhecido e de que maneira pela sua longa «duração», tinha lugar a primeira sementeira da época agrícola que se avizinhava: a sementeira do centeio. Era um corropio de carros atrelados às juntas de vacas, chiando pelas aldeias, rua abaixo, rua acima, num corropio, cujo lema final era o transporte do esterco (estrume dos currais do gado), para as leiras (terrenos), que depois de podre e bem curtido, servia para adubar as respectivas terras.

Daí até à proxima etapa – a segada -, era tudo uma questão de paciência e fé em Deus. Por um lado, porque desde que as sementes eram lançadas a terra, até ao momento de colher os frutos, «nada mais» era necessário fazer, pelo outro, porque se rezava aos Santos, para que o as neves ou as geadas, muito comuns por estas bandas, não fossem tão abundantes, que viessem pôr em causa o sustento de muitas familias.

Neste periodo de maior lazer, em parte provocado pelo frio, pelas chuvas e pelas neves, era então chegado o Entrudo, época de Caretos por todas as aldeias do concelho e de Motes, uma exclusividade milenar da aldeia de Gralhas que a juventude muito apreciava.Mas se os primeiros não constituíam qualquer novidade, o que eram afinal os Motes?... De que tratavam?... Os Motes, eram quadras de louvor, escárnio ou maldizer, de origem pagã, nascidas nos alvores da nacionalidade, e um tipo de poesia, galaico-portuguesa, que constituíu sem qualquer dúvida, um dos fenómenos culturais mais ricos da Idade Média e se prolongou na aldeia de Gralhas, até aos finais dos anos sessenta do passado século. Eram enfim, um momento único de louvor ou de critica aos aldeões, tendo sempre como pano de fundo, a satirização da sua conduta, das boas ou das más acções praticadas, durante o ano que os antecediam.

Os textos das quadras, que poderão eventualmente ser chamados de intervenção, eram lidos por dois «trovadores» previamente escolhidos, pela juventude da aldeia, que em conjunto com os anotadores (autores), as escreviam antecipadamente e em total segredo, durante os serões das longas noites do inverno, de modo a que no momento certo, constituíssem autêntica novidade. O texto no seu todo, contemplava, uma a uma, todas as familias da aldeia, e em geral, cada duas ou três quadras, eram dirigidas em exclusivo e em forma de louvor ou critica, a determinada familia ou membro da mesma. O amor, a vaidade, a ganância, a inveja, a falta de solidariedade, a critica pessoal, as «casamenteiras» e os «compadres», aliados à veia cómica, lirica ou satírica estavam sempre presentes. Por vezes, determinadas criticas, não eram muito do agrado de quem as ouvia, designadamente, quando as mesmas lhe «batiam à porta», ou mesmo, quando através da sua leitura, se punham a descoberto, «amores proibidos», «negócios fraudulentos», «comportamentos hereges», «falta de dignidade e honradez» ou se ridicularizavam os comportamentos menos abonatórios das pessoas visadas.Mas como é que tudo isto funcionava: No dia aprazado para a leitura dos ditos Motes e ao toque do sino da Capela da aldeia, o povo juntava-se no largo hoje apelidado de Cruzeiro. Um dos trovadores, subia para uma das varandas ali existentes, segurando o seu caderno de leitura e o melhor galo da freguesia, devidamente decorado com todo o tipo de adornos, e que para o efeito, era oferecido ou comprado. Para outra varanda fronteiriça, subia o segundo trovador, munido tal como o primeiro, do seu caderno, onde previamente haviam sido escritas as quadras, que iriam fazer as delicias dos presentes, tanto mais que cada lavrador, suas mulheres, filhos, filhas, namorados, namoradas, velhos, velhas e até os solteirões e solteironas da terra, não escapavam à ridicularização.

Uma vez instalados e em jeito de leitura feita ao desafio, os trovadores, só interrompidos pelas palmas dos presentes, faziam a apologia do galo. Realçavam as sua cores, o seu tamanho, o tamanho da sua crista e dos seus «tomates», a sua elegância e altivez, o modo como cantava, tudo isto intercalado com comparações satiricas, a determinadas pessoas presentes na concentração. Aqueles que não resistiam, abandonavam o local a resmungar, em sinal de protesto, mas tudo isto fazia parte da «festa»... Após atingidos os primeiros objectivos, o galo era então simbolicamente morto e esquartejado. Logo após, procedia-se à distribuição de todas as componentes do seu corpo!... Sempre de forma simbólica, aos aldeões alvos de maiores criticas, eram atribuídas as penas. A outros, cuja conduta não era tão censurável, saíam-lhe em sorte as patas ou a cabeça. Para outros, dado o seu melhor relacionamento e disponibilidade, ficavam reservadas, as asas ou o pescoço e para os aldeões exemplares, para aqueles que mais contribuíam para a boa harmonia e para o progresso da terra e respectiva população, ficavam as cochas e o peito, que eram as partes mais apreciadas.

No final da sessão, surgiam os comentários de concordância ou discordância, com o desfolhar das criticas. Discutia-se, a «qualidade» dos Motes, se tinham sido bons ou maus, se tinham sido melhores ou piores que os do ano anterior!... Discutia-se o «ataque» que fora feito ao fulano A, quando quem tinha a ver com o assunto, era o B. Discutia-se a inoportunidade de desvendar determinado segredo, quando outros, deviam vir para a praça pública, enfim... todo um rol de questões, que eram tema de conversa, nos três ou quatro dias que se seguiam.
Quanto ao galo, agora sim... via chegada a sua hora, de fazer as delicias de quantos tinham contribuído para a festa. Anotadores e trovadores, reúniam-se em casa de um deles e após a respectiva «janta», comemoravam pela noite dentro...