ASSIM ERA A VIDA DOS NOSSOS AVÓS

VIDAS DIFÍCEIS…

Através deste pequeno “filme a preto e branco”, irei procurar dar a conhecer – particularmente aos mais jovens, o que foi o “mundo montalegrense” do século passado, como vivia a nossa gente nesse dito mundo completamente fechado, e as agruras de uma vida que só viria a conhecer melhores dias a partir dos anos 60 com os surtos migratórios.

Como nota introdutória, começo então pelo inicio da era repúblicana!... Corria o ano de 1910, e enquanto as tropas monárquicas com as suas luzidias espadas e os seus cavalos em passo de “caracol” desciam pelas encostas do Larouco em direcção à cidade de Chaves, na tentativa de recuperarem posições face ao avanço dos repúblicanos, dois meninos - a Maria Carneira* e o seu irmão Begia¨, guardavam uma junta de vacas, ali para os lados do Castelo do Romão muito próximo da aldeia de Gralhas. Assustados com a “guerra”, esconderam-se por entre o arvoredo e os penedos por ali existentes, de onde só saíriam com a chegada do pai de ambos – o “Ti Carneiro”, que entretanto havia ido ao seu encontro. Pareciam coisas do “outro mundo” e era preciso serenar as crianças!... Crianças que tal como todas as outras cedo despertavam para a vida.

No único aposento das casas da época, cobertas que eram de colmo, de rudes paredes de pedra sobreposta por cujas fendas muitas vezes entrava o frio e o vento, nasciam essas crianças, nestas aldeias remotas e “perdidas no tempo. Nasciam sem assistência médica, e só raras vezes com o auxilio de uma parteira improvisada, no mesmo leito tosco e bárbaro do noivado. O ritual era sempre o mesmo!... Momentos antes de dar á luz, a futura mãe colocava junto ao fogo do lar o pote de ferro com água para o banho. O “home”, esse andava pelos campos a sachar, a lavrar ou a arrancar ervas. Acontecia por vezes uma vizinha chamá-lo para ver o filho que havia nascido. Quatro ou cinco dias depois, a mãe aparecia pela primeira vez após o parto na rua com o filho ao colo, e após uma semana já o levava para o monte. Neste “meio-tempo”, tinha também lugar o baptizado. Durante dois anos – ás vezes mais – a criança alimentava-se do leite materno!... Por vezes já comia pão e ainda mamava. Exposta ás intempéries da vida, ao calor e ao frio, ao sol e á chuva, como um “animalzinho bravio” nascido no monte sob uma lapa, a criança ou sucumbe ou fortalece. Eram as agruras do tempo e da época. A maioria das vezes criava-se bem resistente e forte nesse severo regime de selecção natural.

Apartada do leite, é então invariavelmente abandonada á educação do próprio instinto. Aos cinco anos ensinam-lhe a rezar, e aos sete já lhe confiam a guarda das vacas e das ovelhas. Até eu sei como era!... Muitas vezes, a criança passa já os dias no monte, solitária, pastoreando o gado. O monte é a sua primeira escola e quase sempre a única. Aos dez anos, começa a preparar-se para a comunhão, "indo á doutrina". Era assim que o “senhor padre” queria e determinava. Quem não seguisse a regra, entrava em “pecado”.

Aos doze anos comunga. E a vida de trabalho ininterrupto principia. Rapaz ou rapariga e de comunhão feita, é já uma criatura emancipada. Se os pais são pobres, vão “servir”. Se são filhos de um lavrador remediado, fazem em casa o tirocínio árduo da lavoura. No caso do “criado de servir”, começa então por ganhar o que come e bebe, bem como os “usos da casa”. Raros são aqueles que têm direito a “jorna”. Mais tarde - dos dezoito aos vinte anos - os mais diligentes e ao serviço de lavradores mais abastados, chegam a ganhar três escudos mensais, salário que nos idos anos 30 e 40 era um fenómeno por estas bandas.

Os usos variam também com a idade dos “criados”!... Uma a três camisas de estopa, um ou dois pares de calças de cotim ou saias de riscado, um colete e um par de sócos, era também o prémio pelo seu trabalho. Aos rapazes, as patroas remendam-lhes e lavam-lhes a roupa. As raparigas fazem-no por conta própria e as relações entre estes “servos pobres” e estes amos tão pobres como eles, são quase familiares mas sempre com a noção inata da hierarquia. Por volta dos vinte e dois, vinte e três anos, o moço de lavoura, tendo concluído a sua aprendizagem e livre de “ser soldado”, casa-se. É tão raro ficar um lavrador sem casar, como haver moço que não lute tenazmente para se furtar ao tributo do sangue. O casamento funcionava por estas terras como base essencial á independência. Moço ou moça que não casasse ficava condenado a servir toda a vida ou a trabalhar para os “bezinhos”.O casamento era pois a aspiração unânime, o fim para que tendem todos os esforços e o prémio conquistado com as canseiras mais indescritíveis. O idilio, meio sensual e meio lírico, iniciado nas segadas, nas malhadas, no arranque das batatas, ou até no adro da Igreja, termina com a boda para se converter numa obstinada refrega pelo pão.

Ordinariamente, a noiva leva para o casal um cordão e umas argolas de ouro e o noivo as alfaias indispensáveis para o granjeio das terras. Os parentes e os amigos oferecem aos esposados, alguns duas galinhas, outros uma raza de centeio, outros dois pedaços de pano de linho, um pote, meia dúzia de tigelas ou de pratos de barro, meio alqueire de pão, a pá para o forno ou um carro de lenha. Se um deles é filho de lavrador “abastado”, este abona-lhes o gado!... Uma junta de “bacas” medianas para principiar e raras vezes um bezerro para a engorda. Algumas vezes, também raras, levam ainda em dote uma “céba” de porcos e um “odre” de vinho. O primeiro dia de casados é para os noivos pobres o primeiro dia de trabalho árduo. Vão tratar os dois umas terras a “mêas” que tomam a algum “bezinho”. Desde o nascer do dia até noite fechada, trabalham ambos no campo ou na eira. À noite, até altas horas, a mulher fia junto da lareira a teia com que há-de fazer as primeiras meias e os primeiros cobertores. O homem descansa da labuta do dia, ajudando a mulher a dobar o fiado.

Feitas as sementeiras e antes das colheitas, quando a lavoura abranda, o homem vai ás feiras, vende os bezerros e ás vezes as “bacas”, compra outras mais baratas e vai ganhando alguns favores em carretos de pedra, de lenha ou de estrume. A mulher, no entanto, cora a teia, lança ninhadas de frangos e galinhas e engorda os porcos para sustento no ano que se segue. Mas esses pobres têm uma riqueza: São independentes!... Enquanto pagarem com o que a terra lhes dá, essa terra que eles lavram cavam e semeiam pertence-lhes. É dessa terra, adubada com o seu suor, que lhes vem com o sustento, o orgulho de um domínio que se lhes afigura sem partilha. São deles as águas, os campos, as árvores, os montes, as eiras e as casas. Não existe para eles, como para o operário citadino, um patrão dominador e imperativo. Só eles mandam na “sua fabrica”.

No ínicio do século passado, o alimento destes casais, reduz-se a pouco mais do que a caldo e pão. O homem que trabalha de manhã até á noite, a mulher que o acompanha na sua lida incessante, comem menos do que hoje as crianças da cidade. Mas se a gravidez a não deformou, é uma mocetona corada e jovial de larga bacia, de grandes seios e de roliços braços de trabalhadora. O homem é musculoso e rijo. Ambos cantam enquanto sacham. Nenhuma tristeza perturbam esses casais pacificos e laboriosos, que não conhecem o dinheiro. Gozam amplamente os dois saúdes humanas: a moral e a física, de cuja união resultam as felicidades perfeitas. O trabalho é o seu regime moral.

O caldo destes trabalhadores infatigáveis reduz-se a algumas couves galegas, apanhadas na horta, a alguns feijões e a um magro fio de azeite, ou um “bocado de unto” como adubo. O pão é de centeio, cozido em grandes fornadas no forno do povo para durar uma ou duas semanas. O cozer pão a miúdo é prejudicial á economia. Porque come-se mais enquanto é fresco e quantas mais vezes se acende o forno mais lenha se consome. Raras, muito raras vezes, há sardinhas ao jantar ou à ceia. Petiscos como este só de longe a longe. Quando o sardinheiro as vende a mais de 5 ao vintém, a mulher aventura-se a gastar dois centavos nesse luxo supérfluo. Um quartilho de azeite, podia custar seis ou sete vinténs e durava a um casal pobre, de 15 dias a um mês. Anos há, em que o pão (centeio) escasseia e a caixa (arca) se esgota. Aí surgem de Montalegre os compradores, oferecendo oito tostões por alqueire. Á salgadeira – os que a têm – vão apenas pelas festas do ano: no Entrudo, na Pascoa e no Natal, ou em dias de trabalho extraordinário, quando não podem de todo, sozinhos, granjear as terras, e rogam o auxílio dos vizinhos que vêm ajudar, sem direito a “jorna” e só pelo favor e pela mantença. Nestes tempos, uma família de lavradores, que não satisfeita com as dádivas generosas da terra - pão, batatas, hortaliça, feijão e lenha, gasta em alimentação, vestuário e demais necessidades da vida para cima de dez tostões por mês, ou é rica ou está perdida.

Parecendo á primeira vista impossível que tão insignificante quantia possa chegar ao orçamento de uma casa, verifica-se, que ele é suficiente e não é mesmo atingido na maior parte das das vezes. O exíguo "orçamento" de um casal de lavradores no inicio do século passado por terras de Barroso para as primeiras necessidades, assentava fundamentalmente em quatro modestísimas verbas: 24 tostões para o azeite, 10 para as sardinhas, 2 para sal e 6 para sabão. Fora do "orçamento", ficam as despesas de vestuário, cujas “andanças” de roupa para homem pode durar até 5 anos. Quase sempre usando “sócos”, o lavrador não chega a romper um par por ano. A boina, que custa de seis a dez tostões, serve apenas para usar nos dias de feira ou nas festas. No trabalho diário, o lavrador usa uma capucha de burel no Inverno e um lenço da mão no verão. As mulheres gastam ainda menos do que os homens!... Uma saia de chita, um avental com barras a enfeitar e um lenço para a cabeça, são as peças essenciais e que duram “uma vida”.

Roupa branca, lençóis, toalhas e ainda as calças de uso dos homens saem do linho, da estopa ou dos tomentos – da teia fiada em casa. O gado, é considerado fortuna comum. A própria doença, parece respeitar todo este culto sagrado da economia dos lavradores de barroso.Só a velhice mata esta gente. Quando entram na agonia, a família manda chamar o padre para os confessar e ungir. Depois do padre, vem então o médico - se o houver - que raro receita e as mais das vezes chega a tempo de verificar o óbito.

E assim morreu economicamente todo este mundo e toda esta gente, exactamente da mesma maneira como economicamente nasceram e viveram. Só a emigração a partir da década 60, mudaria os hábitos e o "bem-estar" destas gentes...

Domingos Chaves*

* Texto adaptado a uma história que me foi contada em criança pela minha avó Maria da Glória Gonçalves Carneiro.